sábado, outubro 08, 2011

Um conto sobre períodos de tempo.

       Torrencial não descreve totalmente o estado de espírito da chuva que batia em minha janela. Os relâmpagos eram tão fortes e sequenciais que, caso não tivesse certeza de tê-lo desligado, verificaria meu abajur. Havia sido um dia complicado. Desde que ele partira, os dias eram complicados. E ele partira há bastante tempo. Eu já era quase boa em controlar dias complicados. A ausência era presente, se é que isso é possível. Meu quarto assumia um ar fantasmagórico quando as tempestades aconteciam, ele se tornava sombriamente assustador, Até mais do que minha alma estava se tornando. Não tê-lo ao meu lado só tornava tudo isso pior. Costumávamos rir em meio aos trovões. Ele dizia que os risos afastavam todo e qualquer medo que se aproximasse de nós. Eu ria e esquecia de todo o resto. A salvação da minha noite era essa e eu tinha absurda noção disso. Cada célula do meu corpo sabia que a melhor à ser feita, era discar aquele velho e conhecido número de celular. Se ele atenderia ou não, era o que me preocupava. 
       Olhei para o criado mudo, o celular jazia tranquilo sobre um velho trilho de crochê. Uma foto de infância estava totalmente visível, mesmo com todas as luzes apagadas. Observei-a. Eu, uma linda menininha de cabelos longos e escuros, trabalhados em uma bela trança, provavelmente tecida por minha avó, habilidosa como ninguém quando o assunto eram trabalhos manuais. Pobre vovó, se fora e eu nem pude agradecê-la por todos os momentos maravilhosos que passamos juntas. 
       Em meio a minha pequena distração, minha música preferida começa a ecoar pelo ambiente. Regina Spektor cantava The Call  à plenos pulmões. A calmaria trazida pela melodia se infiltrou em mim, mas logo o medo, acompanhado pelo discernimento do que aquele som implicava, tomou conta de todo o meu ser. The call era o toque especial das chamadas que provinham do celular dele. Meus neurônios organizaram uma breve linha de pensamento: Se essa música está tocando, é porque ele está ligando. Peguei o celular e observei-o, aguardando um segundo até que a minha visão se adaptasse à intensa luz que fluía da tela. Seu nome saltou-me aos olhos. Eu não precisava ter olhado para ter absoluta certeza do remetente dessa chamada. 
       Entre um clarão e o próximo, o telefone ficou mudo, de repente. 
       "Ele desligou. Não queria falar comigo, de verdade. Só queria imaginar o quão feliz eu ficaria por vê-lo ligando durante uma tempestade, o que significava que eu estaria morrendo de medo."
       Novamente, The call inunda o quarto de modo pleno e absoluto. 
       "Não era verdade, ele realmente quer falar comigo." Tive de lembrar à mim mesma, de súbito. "Não crie expectativas. Ele foi embora, você sabe disso. Não pode iludir-se que vocês foram feitos um para o outro, porque simplesmente não foram." Regina já estava quase no refrão, o que significava que, dentro de alguns segundos, a chamada seria encaminhada para a caixa postal. 
       - Alô? - Tentei parecer o mais controlada quanto pude, mas ao abrir os lábios eu soube que não havia sido o suficiente. 
       - Atrapalho? - O mistério, como sempre, estava presente em sua voz. Seu tom sutil, demonstrando um interesse repentino pelo que eu estaria fazendo. Recordei-me, por um breve instante, do brilho que seus olhos emanavam na última ocasião em que havíamos nos visto. Olhos numa tonalidade absurda de mel, um tom que jamais seria encontrado em qualquer outro par de olhos. Uma cor que só se encaixava bem em sua pele radiante. 
       - Atrapalharia o que? Por favor, Benjamin, não há nada para atrapalhar. - A raiva transpareceu. Era o último sentimento que eu esperava demonstrar, mas lá no fundo, eu sabia que sentia uma raiva qualquer por ele. 

       - Imaginei que você pudesse estar dormindo, Clara, só isso. Era isso que eu imaginei que atrapalharia. - Ah, isso. Lógico, só podia ser isso. Seria prepotência minha pensar que ele sequer pensasse que eu poderia estar com outro alguém, sendo feliz e seguindo minha vida. Até porque eu não tenho direito a isso, não é? A raiva só fez crescer dentro de mim. 
       - Olha, se você cogita que eu consigo dormir se não for ao teu lado numa noite dessas, está enganado. Se você pensa que eu me deixei apaixonar por outro alguém, está errado. Por mais que nos judiássemos, nos amávamos. E você... Ah, você fez questão de dar um fim à tudo que houve de mágico entre nós, não fez? - Comecei a soluçar como uma menina boba que chora porque perdeu seu brinco preferido. - Você acha que tem o direito de me ligar depois de todas essas semanas em que eu fiquei aqui, sozinha, tentando definir um bom motivo para você nunca mais ter me dado notícias? Acha que pode me confundir com qualquer que sejam as suas palavras? Acha justo tudo isso? - As lágrimas insistiam em cair dos meus olhos. Pesadas e cristalinas, escorriam pela pele clara das maças do meu rosto e faziam tortuosos caminhos até acharem seus destinos, ou se perderem em parte qualquer. 
       - Clara, eu amo você. - Simples assim. Destrutivo assim. 
       Minha mente esvaziou-se por um momento e só houve silêncio, exceto o respirar que vinha do outro lado da linha e do pulsar contínuo do meu coração.
       - Eu não quis te magoar quando fui embora, Clara... - tive de interrompê-lo.
       - Você não quis me magoar? Esse foi um dos poucos sentimentos que você me deixou. Mágoa. Ressentimento. Desamor. - Eu parei de soluçar no exato momento em que comecei a pronunciar as palavras anteriores. Montei uma mulher forte dentro de mim. Uma mulher que não queria mais ser iludida por um Bohemio qualquer. Aquela que fazia Psicologia e que podia entender qualquer problema da Psique Humana, menos a falta de caráter que Benjamim estava demonstrando. 
       - Clara, eu sinto muito que tenha de ter sido assim. A última coisa que eu esperava era magoar-te, sempre prometi que te faria feliz acima da minha própria felicidade. Te chamei de amor, quando eu sabia o que isso implicava, eu sabia que morreria por você em qualquer que fosse a circunstância, minha peq... -  Interrompido novamente. 
       - Não pronuncie isso. - Fui ríspida, quase grossa. Quis demonstrar uma atitude forte, e acabei sendo autoritária. 
       - Porque não? Você sempre gostou de ser chamada assim. 
       - Eu gostava de ser chamada assim quando era uma verdade. Eu era a sua pequena. Eu era a sua menina, o seu anjo, o seu amor. Agora eu sou o seu passado, ou melhor, eu faço parte dele. Seu passado não pertence só à mim, pertence à tantas outras que também foram 'suas pequenas', 'suas lindas' e 'seus amores', assim como eu fui. Sim, fui. Do verbo Ser, mas no passado, que é o seu lugar. Um passado que, quando se trata do mim, foi só seu. - Encerrei do modo como eu ansiava encerrar. 
       - Então, você realmente naõ me deseja ao seu lado, nessa noite estranha e sombria? - Aposto como ele estava dando um sorriso torto, totalmente convencido, achando que venceria por tocar nesse assunto. 
       - Você quer que eu minta, ou que diga a verdade? 
       - O que você achar conveniente. 
       - Não é que eu não sinta a sua falta em momento como esse, Benjamim, mas eu tenho uma dose bem grande de amor próprio e sou madura o suficiente para entender que quando sou abandonada uma vez, posso facilmente ser abandonada novamente. Tenho consciência de que se você fez isso uma vez, será capaz de fazer de novo. E sinceramente? O que eu senti nessas semanas em que você não estava ao meu lado, eu não desejo a ninguém. Portanto, eu decidi, nesse exato momento, que eu não desejo a sua presença em minha cama. Nem em noites tempestuosas, nem em noites felizes, nem em noite alguma. O amor que eu senti por você foi substituído por um sentimento que eu não conhecia, uma dor profunda que me mostrava o tamanho do estrago que você havia feito. Um estrago que só um novo amor poderá fazer cicatrizar.  
       - Eu sinto muito. - Ele disse, com um leve pesar no seu tom de voz, que por um momento percebi estar embargado. Ele estava chorando. 
       "Ele precisa de um instante", pensei.
       O silêncio reinou por alguns minutos. 
       - Benjamim? 
       - Sim? - Ele pronunciou, fazendo um barulho que parecia com o soluçar de uma criança desprotegida quando está perto de um perigo. 
       - Eu ia te ligar. Quando peguei o celular nas mãos, ouvi a canção que eu sempre ouvia quando você ligava pra mim. A nostalgia tomou conta de mim em um breve momento. - Tive de revelar esse pequeno  mas envergonhante detalhe.
       - Você estava me ligando, Clara? Isso significa que você pensou em mim? - Uma esperança sutil começou a surgir no longínquo horizonte da sua mente. 
       - Benjamim, eu não deixei de te amar, nem por um segundo. Eu senti raiva por você ter me abandonado, me trocado. Mas bem lá no fundo, que é onde os bons sentimentos ficam guardados, eu gosto de você, como gostei desde que olhei com outros olhos, há quase dois outonos atrás. Afinal, você mesmo diz, o amor é como uma fênix: quando ele está machucado demais para continuar vivendo daquele jeito, ele morre e renasce novamente, pra que possa continuar existindo. Assim como muitas outras coisas na vida, é necessário que deixemos algumas coisas se tornarem ruins por um momento, para que essas mesmas coisas possam se tornar melhores em um momento seguinte. 
       - Você vai ser uma ótima psicóloga, Clara, meu amor. - Visualizei o belo sorriso que estaria siando de seus lábios avermelhados e que eu ansiava tanto. 
       - Eu ainda não sou seu amor, novamente. Você sabe, as coisas precisam de um incentivo para renascer. - Cruzei os dedos, imaginariamente, torcendo para que ele entendesse a indireta convidativa que surgira na última frase dita. 
       - Clara? 
       - Sim? 
       - Será que você pode vir aqui em baixo e abrir a porta pra mim? Eu estou um pouco molhado e o vento está ricocheteando no meu rosto de forma violenta. Eu realmente espero que você ainda tenha o meu moletom guardado em um cantinho da sua cômoda. E espero mais ainda que esteja usando o edredom florido, aquele de malha que esquenta bastante. 
       A única expressão que meu rosto demonstrava era surpresa. 
       - Espere um momento, você está na portaria do meu prédio? - Aturdida, pronunciei. 
       - Estou. 
       - E você espera que eu te deixe subir e entrar embaixo do meu edredom florido que esquenta bastante? - Ri, quando lembrei do detalhe sobre o meu edredom que ele havia citado. 
       - Clara, eu não espero que você me deixe entrar e que me ame a noite toda. Eu apenas peço que você me dê uma nova chance. Eu sei que não agi de forma correta quando deixei você, mas eu realmente pensei que nós não tínhamos futuro. Fui para a Turquia, trabalhei com meus avós durante algum tempo e vi que meu futuro é ao seu lado, tentando entender os seus dogmas e dando um jeito de aturar a sua TPM, que é pra matar qualquer outro. Mas que pra mim, é a época onde você fica mais linda. Eu não tinha noção de que viria pra cá essa noite, mas quando você disse que estava com ódio de mim, eu pensei que a melhor atitude que eu poderia ter, seria, ao menos, vir te pedir desculpas na sua porta, e não pelo telefone. Agora eu espero que você consiga me perdoar e deixar que eu construa um belo futuro, ao teu lado, cruzando o nosso destino e entrelaçando os meus dedos aos teus. 
       O fôlego sumiu. Eu era linda durante a TPM? Ah, isso era o que menos importava. Ele realmente queria estar comigo durante um período bem longo de tempo chamado futuro. 
       Foi a minha vez de fazer silêncio. Abri a porta com o máximo de cuidado que pude, para que ele não pudesse ouvir o barulho das dobradiças. Dirigi-me as escadas e desci no máximo de velocidade que eu pude, sem demonstrar meus suspiros a cada vez que eu percebia que estava mais próxima ao térreo. Não tirei o celular do ouvido durante todo esse trajeto. Fiquei ouvindo sua respiração, e imaginando o sabor que seus lábios teriam no momento que eu o encontrasse lá embaixo. 
       Foi só chegar ao fim da escada e botar os pés na varanda que antecedia a porta do prédio que o vi, parado, encostado na portaria e olhando a rua. Esperando um milagre... imaginei. Dei leves batidinhas no vidro da porta, para que ele pudesse perceber que eu estava ali. Com uma surpresa aflorando, ele me fitou, aqueles olhos cor-de-mel olhando profundamente nos meus. Deu um passo. O porteiro o reprendeu. Eu assenti para o porteiro, que o deixou entrar. 
       Benjamim pingava. Parecia que o temporal havia se focado nele e que haviam chovido milhões de milímetros por sobre a sua cabeça. Fiquei ao lado da porta, do parte de dentro, aguardando que ele entrasse e me tomasse nos braços, com paixão. O que vi, foi um homem, e não mais um Bohemio. Ele entrou pela porta rapidinho, para que a chuva não pudesse entrar com ele. Olhou-me nos olhos, com uma intensidade irracional, de um jeito que, acredito eu, seria capaz de transmitir palavras, caso fosse possível. Não disse nada, apenas deu-me um leve beijo nos lábios. Um beijo que não tinha paixão, mas sim ternura e respeito. Nesse ato eu percebi que ele respeitaria o meu tempo, e que teríamos todo o tempo do mundo. Entrelaçamos nossas mãos. Sem falar nada. Eu apoiei minha cabeça sobre o seu ombro, e caminhamos lentamente, degrau após degrau, rumando três andares acima. 
       Na porta do apartamento, ele hesitou. 
       - Você tem certeza de que quer me deixar entrar no seu mundo, de novo? - Ele perguntou, dando-me um instante para pensar. 
       - Você tem certeza que não vai me deixar de novo? - Eu rebati. 
       Ele assentiu, respondendo a minha pergunta e eu assenti, respondendo a sua. 
       Ganhei mais um beijo delicado, desta vez na testa. Senti uma contradição crescendo dentro de mim. Eu, que sempre fui uma mulher madura e independente, estava feliz por saber que havia alguem zelando por mim. O beijo delicado se intensificou um pouco, e uma mão contornou minha cintura, do modo mais antiquado quanto era possível. Ele olhou novamente no âmago dos meus olhos, mas desta vez pronunciou três leves palavras:  - Eu amo você. -  Mágicas palavras. 
       O apartamento, apesar de não ter sistema de aquecimento, estava alguns graus mais quente que o corredor e muitos acima do frio que fazia lá fora. 
       Ele andou devagar, atrás de mim, respeitando os limites que eu impunha até aquele momento. 
       Sentou-se na poltrona, que ficava no canto mais iluminado da sala, e começou a tirar seus casacos, que estavam totalmente molhados. Fui buscar um de seus moletons, ainda cuidadosamente dobrados em uma gaveta específica da minha cômoda. Percebi passos, mas não me importei, ele devia estar levando as roupas até a lavanderia. 
       Braços envolveram-me no breu do quarto. Os relâmpagos já tinham cessado, então o ambiente se tornara mais escuro. Eu não havia acendido as luzes porque sabia exatamente onde estavam os moletons. Havia ido até eles inúmeras vezes, apenas para redobrá-los na esperança de que ele voltasse, um dia desses. O dia havia chegado. Agora ele estava atrás de mim, mãos acariciando a pele dos meus braços, descobertas desde que eu tirei meu casaco, ao entrar no quarto. Um beijo suave no meu pescoço. Um arrepio percorrendo todo o meu corpo. Virei-me para seu rosto. Beijei-o. Abracei Benjamim com o máximo de força que pude. Tornei o beijo mais insistente, e procurei manter-me grudada a ele. Éramos um só corpo. Puxei-o para mim, como se fosse possível diminuir a distância entre nós. Ele aceitou o meu abraço, e intensificou seu beijo. Nos amamos como nunca antes. havia respeito e ternura, e não só a paixão e o fogo. Benjamim era outro. Um homem maduro. O homem que eu sempre procurei. Agradeci-me mentalmente por estar usando o edredom que ele mencionara, nos enrolamos nele e amanhecemos ali, abraçados. E assim seria, conforme o meu desejo, por aquele longo período de tempo, chamado sempre.  






Um comentário:

Isabela Conci disse...

Ownt que lindo! :)

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